25.6.10

_ espelho desempregado

____Não agüento mais essa minha vida sem sentido. Já não tenho cara e ainda tenho que lidar com a questão de que ninguém nunca me viu realmente. Como pode? Eu estou sempre aqui, no mesmo lugar, parado e aguardando que me dêem atenção. Mas as pessoas são terríveis demais, olham para mim para enxergarem os defeitos ou as virtudes delas mesmas. Será que eu não tenho direito a uma vida mais digna? É tão descabido que chega a ser um descalabro!

____Se bem que esse é um pensamento ultrapassado. Já revi alguns conceitos e tentei entender as pessoas como são. Afinal, o tanto que eu reclamo delas, elas devem reclamar de mim – muitas vezes bem na minha frente. A verdade é que quando resolvi me acostumar com essa mania egocêntrica das pessoas, elas me respondem com uma nova atitude. De primeira achei que seria uma oportunidade para ser apreciado como me é merecido, afinal passei tantos anos no mesmo posto, sendo lembrado apenas quando as pessoas se lembravam delas mesmas. “É minha chance”, eu pensava, mas no fundo eu sabia que estava me enganando – nada vem tão fácil. E foi assim que, sem dizer uma palavra, o mundo todo virou as costas para mim. Fui demitido. Claro, vocês devem pensar: “Ah, mas é só um espelho! Quem o demitiu?”, mas foram vocês que me mandaram embora. Vocês e todos os outros deixaram de buscar imperfeições em vocês mesmos. O que, a princípio, parecia bom.

____Sem mais vontade (ou seria coragem?) de encarar a si mesmos de frente, o que fariam comigo? Até hoje não sei bem o que vocês pensam de mim, mas uma coisa se tornou clara: o motivo para tal atitude impensada e insensata só podia ser o que mais tarde se tornou imensamente claro para mim. Suas vidas não lhe eram mais interessantes. Estavam se interessando muito mais na vida dos outros e por isso não queriam mais olhar para mim – ou melhor, para vocês mesmos. Ah, mas como eu fiquei nervoso. Cheguei a tentar me quebrar contra o chão, porém isso só me traria ainda mais azar. Então permaneci com a incapacidade de entender seus feitos e me acalmei. A dúvida não saía da lembrança e insistia em me atormentar quando qualquer um de vocês parava a minha frente, sem perceber, e murmuravam palavras de ódio, inveja, e rancor contra pessoas que nem estavam ouvindo para poder se explicar; tentar amenizar a situação com um pedido de desculpas, ou simplesmente resolver tudo no tapa de uma vez. Se bem que, se fosse diferente não faria sentido mesmo. A natureza de vocês não permite que sejam sinceros muito menos verdadeiros. De tantos anos que fiquei aqui encostado na parede, captei cada nuance, cada maneirismo de todo ser que passava por mim. Como eu disse para mim mesmo uma vez, “vocês são todos iguais por fora” – e agora também o eram por dentro – e mesmo assim insistem em apontar as falhas e os erros uns dos outros. Talvez se me readmitissem tudo voltaria ao normal. É só uma dica.

____É provável que eu esteja perdendo o meu tempo ao falar sobre isso. Afinal ainda sou apenas um espelho. Mas mesmo sendo apenas o que sou – e aceitando isso de bom agrado – evoluí centenas de vezes mais que vocês. Parado aqui, em silêncio e observando o movimento. Cresci. Logicamente não o posso fazer fisicamente, pois nesses atributos, confesso, vocês são superiores. Mas sei que o meu desenvolvimento interno foi maior que o de vocês. Fiz isso sem precisar nem mover um só músculo – ou lasca. Seja como for, nem deveria ter começado com isso de novo. Mas o que eu posso fazer? Mesmo desempregado, tudo que eu sei fazer é refletir.

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